Por Magalhães Neto
No contexto jurídico de cá da terrinha (o português), a defesa de direitos fundamentais contra atos da administração pública tem assumido uma importância crescente, especificadamente nos casos envolvendo a AIMA (Agência para as Migrações). Desde o início de 2024, a agência AIMA tem sido alvo de uma série de processos judiciais, atingindo o impressionante número de 7.600, como reportado pela Ordem dos Advogados em maio deste ano. (ao escrever este artigo, estamos em Outubro). Essas ações estão relacionadas a atrasos e falhas na prestação de serviços essenciais aos migrantes, como a concessão de autorizações de residência, o que configura uma violação de direitos fundamentais como a dignidade e o acesso à justiça.
À luz dessas acusações, torna-se crucial examinar as ferramentas jurídicas disponíveis para a proteção dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e migrantes afetados. Neste sentido, o conceito de “intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias” presente na legislação processual portuguesa, e amplamente discutido no livro Pretexto, Contexto e Texto da Intimação para Protecção de Direitos, Liberdades e Garantias de Carla Amado Gomes , oferece um ponto de partida essencial para entender as dinâmicas em jogo nos processos contra a AIMA.
O Enquadramento Jurídico da Intimação e a Situação da AIMA – Exceção e não regra.
O livro da Carla Amado Gomes explora a intimação como um meio processual especialmente criado para a defesa de direitos fundamentais, seguindo as orientações do artigo 109º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA). Este mecanismo permite que o cidadão ou qualquer pessoa jurídica possa requerer a adoção de medidas urgentes contra atos ou omissões da administração pública que coloquem em risco o exercício de direitos, liberdades e garantias. Aplicando essa lógica ao caso específico da AIMA, a situação jurídica sugere que muitos dos migrantes que ajuizaram ações poderiam ter recorrido à intimação para exigir uma resposta mais célere por parte da agência. Entre as principais queixas, estão os atrasos na emissão de autorizações de residência e documentos relacionados à regularização migratória. Esses atrasos têm um impacto direto no exercício dos direitos fundamentais dos migrantes, como o direito ao trabalho, à saúde e à segurança jurídica. A utilização da intimação garantiria uma tramitação mais ágil dos processos, uma vez que o próprio mecanismo processual é desenhado para ser célere e evitar que a administração pública procrastine a adoção de medidas corretivas. Assim, o tribunal poderia, em prazo reduzido, obrigar a AIMA a tomar medidas imediatas, como a emissão de documentos pendentes, a fim de assegurar que os direitos dos migrantes fossem preservados em tempo útil. Segundo o artigo 109º do CPTA, o tribunal pode até mesmo substituir-se à administração na prática de atos administrativos vinculados, caso esta se revele omissa.
VIOLAÇÕES DE DIREITOS E O DEVER DE ATUAÇÃO
O problema enfrentado pelos migrantes junto a sua regularização pode ser analisado à luz de uma das questões centrais levantadas por Carla Amado Gomes: a ineficácia da administração pública perante direitos fundamentais. De acordo com o texto da autora, os direitos fundamentais não podem ser reféns da morosidade administrativa, e é dever do Estado garantir a efetivação plena desses direitos por meio de mecanismos processuais apropriados.
Em situações como as que envolvem a AIMA, a morosidade na emissão de autorizações de residência tem consequências severas, como a impossibilidade de acesso ao mercado de trabalho e ao sistema de saúde. Estes impactos configuram uma violação direta do direito à dignidade humana, consagrado no artigo 1º da Constituição da República Portuguesa (CRP), bem como do artigo 20º, que garante o direito de acesso à justiça e à proteção judicial contra atos que ameacem direitos fundamentais. A jurisprudência administrativa poderia, portanto, ter uma aplicação imediata e relevante nos casos em que a AIMA falha em atender suas obrigações de forma tempestiva.
POR FIM,
As ações judiciais contra a AIMA revelam um cenário de crescente insatisfação e desconfiança em relação à capacidade da agência de respeitar os direitos dos migrantes em Portugal. A intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias oferece uma solução jurídica viável para casos de violação sistemática de direitos fundamentais, como os que estão a ser debatidos atualmente nos tribunais portugueses.
Se devidamente aplicada, e repito o devidamente aplicada, esta ferramenta processual poderia garantir não só a responsabilização da AIMA pelas suas omissões, mas também a restauração imediata dos direitos fundamentais dos migrantes. Para tanto, o envolvimento ativo do sistema judicial em assegurar a tutela efetiva e célere desses direitos será essencial nos próximos desdobramentos dos processos judiciais em curso.
A importância da intimação como uma resposta eficaz a falhas da administração pública, como as ocorridas com a AIMA, reforça o papel do sistema jurídico português na promoção da justiça e na defesa dos direitos fundamentais, especialmente em contextos de vulnerabilidade como o vivido por muitos migrantes em Portugal.
GOMES, Carla Amado. Pretexto, Contexto e Texto da Intimação para Proteção de Direitos, Liberdades e Garantias. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2003.
Ordem dos Advogados. Agência para as Migrações alvo de 7600 processos. Publicado em 3 de maio de 2024. Disponível em: https:// portal.oa.pt/comunicacao/imprensa/2024/5/3/agencia-para-asmigracoes-alvo-de-7600-processos/. Acesso em: 15 de outubro de 2024.